terça-feira, 12 de julho de 2011

6. UTI

Muita dor, muita dor eu senti naquela noite. Passei frio, passei calor e minha mãe só passou nervoso. Como ja disse anteriormente, nunca tinha ficado em hospital e muito menos minha mãe tinha visto um filho no hospital em situações como esta. Às vezes ficava pensando no que meu irmão estava fazendo, se estava na praia, se estava no apartamento, se alguém mais estava sofrendo. Pensava no meu pai, no que estava comendo, o que estavam fazendo o dia inteiro. Também tinha minha tia Sílvia e minha prima Ana que vieram de São Paulo para passar alguns dias com a gente em Santa Catarina. Será que eu tinha estragado as férias de todo mundo? Acho que sim...só da minha priminha que talvez não tivesse maturidade suficiente para entender o que estava acontecendo, mas sabia que a prima dela aqui estava internada no Hospital do Coração, tadinha...Essa informação ela guardou bem.
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Na manhã seguinte chegou a hora de ser transferida para a UTI. Hora de tirar brincos, correntes, anel e a minha pulseira indiana que nunca tirava para nada, desde que ganhei do Pankaj quando fomos para a Índia. Se me faltava um pouco de dignidade, o resto foi embora no momento que entrei na UTI. Momento em que você não é mais dono do seu corpo.
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Não me lembro muito bem do processo quarto-UTI, só tenho lembranças da UTI em si...Aliás, lembro de entrar, ainda deitada na maca, naquele ambiente extremamente branco e limpo, com poucas camas separadas por cortinas e muitos, muitos aparelhos médicos. Atravessamos toda a sala e me colocaram em uma cama bem no cantinho, ao lado da janela, onde poderia ter o máximo de claridade possível, quando as persianas estavam abertas.
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Da minha cama eu conseguia ver o balcão onde os enfermeiros ficavam preenchendo seus formulários e observando a gente. Bom, "a gente" era uma senhora que não vi o rosto, mas que pela voz era muito animada, um outro senhor que também falava alto e era um pouco mais rabugento e do meu lado direito, um homem que estava em coma e esporadicamente vomitava, não sei como, mas toda vez que isso acontecia era um caos. Eu ficava assustada, todo mundo ficava assustado e os enfermeiros corriam para fazer a sucção antes que ele pudesse aspirar o vômito e se afogar.
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Quando me colocaram na cama e pude olhar com calma a minha volta, percebi que os enfermeiros eram muito novos, muito mesmo, na faixa dos vinte e poucos anos, assim como a enfermeira chefe, que era nova também. Usavam uniforme azul, igual aos "scrubs" que via no Grey's Anatomy e todos calçavam Crocs roxos, acho que era para combinar com o azul dos scrubs, e ficava legal, dava um colorido naquele lugar.
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Um enfermeiro e uma enfermeira vieram cuidar de mim e preparar tudo. Esse "tudo" que eu nem fazia conta do que era! Prenderam meu cabelo, que ainda era comprido, comprido, até a cintura. Enxeram o meu peito de eletrodos e colocaram um aparelho no meu dedo indicador para medir meu batimento cardíaco. Tiraram a minha calcinha, guardaram para entregar para minha mãe e lá estava eu pronta para meus dias de solidão. Bom...foi o que eu achei, mas o pior estava por vir...duas coisas que jamais, JAMAIS vou esquecer: a primeira vez que tentei urinar na "comadre" (aquela bacia de ferro que colocam embaixo da gente quando nao podemos ir ao banheiro, exatamente por estar preso numa cama de hospital) e a sonda, bendita sonda para que eu pudesse me alimentar, já que todos os meus músculos estavam paralisados e consequentemente não conseguiria comer.
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Foi algo bem assustador. A enfermeira veio com mais de um metro de uma fina mangueira de plástico e começou a medir o comprimento colocando em cima de mim. Ela começou colocando a mangueira mais ou menos na altura do meu estômago e subia até o meu nariz, mas deixou um pouco mais. Aí chegou a hora que eu tanto temia. Na ponta da mangueira tinha uma peça de ferro, um pouco comprida, e que mais tarde descobri que era a parte que ficaria dentro de mim. E agora, por onde colocar a sonda nasogastrica, claro, como o próprio nome diz, pelo nariz. Acho que o meu olhar assustado e também certamente pela experiência que ela tinha em colocar aquela sonda em pacientes, ela chamou todos os meninos que estavam lá, para me acalmar e segurar minha cabeça.
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É uma dor insuportável mesmo! Lembro daquela ponta de ferro vindo em minha direção e a enfermeira, com toda força e cuidado para fazer o procedimento o mais rápido possível, colocou a sonda no meu nariz. E foi enfiando, enfiando, um metro de sonda! Acho que o momento que a sonda entra, a impressão que eu tinha era que meu rosto estava se partindo ao meio. Não só o rosto, mas todo o crânio. Um dor imensa e ao mesmo tempo escutava eles gritando "engole, engole, engole". Era para eu fazer o movimento de engolir, porque a sonda já estava na minha garganta, e fazendo isso, desceria mais fácil até o estômago. E lá se foi. Eu me tremia toda e chorava muito. Foi medo, dor, medo, dor...E depois daquilo, medo do que mais eu ia enfrentar naquele hospital e por quanto tempo...A partir daquele momento, por um mês não coloquei nada na boca. Não tomei água, não tomei sopa. Tinha um acompanhamento nutricional, mas era nojento ver a comida que eles me davam através da minha sonda. Um saquinho pendurado do lado do soro, no alto da minha cama, com um líquido marrom que entrava pelo meu nariz. Esse era meu almoço ou janta. E depois p limpar o caninho e não ficar com resquícios de comida, eles injetavam água até limpar tudo e voltar a ficar transparente.

Sonda nasogástrica

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Depois de todo o desespero de por a sonda, veio a vontade de fazer xixi. Ó vida! Chamei alguém e um dos meninos vieram me ajudar. Um menino, me ajudar, a fazer xixi na cama do hospital!!?? Acha que consegui? Claro que não! Primeiro foi um sufoco colocar a comadre embaixo de mim. Dois para me levantar e um para colocar a comadre o mais rápido possível. E sempre ficava desconfortável de primeira. Machucava e não me parecia o melhor lugar para fazer xixi. Ele falava que já estava acostumado, que era para eu relaxar, fingir que ele não estava ali, que não tinha nada demais, mas não dava. Nunca tinha feito xixi deitada, muito menos com gente do meu lado! Ele levantava a cama, levantava meu quadril, me cobria com lençol, afinal, estava tudo de fora né...Mas não rolava. Até que outra enfermeira veio e deu uma pressão, do tipo "se você não conseguir fazer, vamos ter que colocar outra sondinha para sua urina sair." Pensei com meus botões, se a sonda por cima foi aquele desespero, imagina por baixo! Não tinha nem idéia de como era essa sonda e não tenho até hoje, mas não queria colocar nenhum tubo dentro de mim denovo! Fiz força, me concentrei, fechei os olhos e NADA! Até que ela teve uma idéia, ligou a torneira que tinha perto da minha cama. A tática também não funcionou. Até que, quando menos esperava, ela veio e jogou um copinho de água fria em cima de mim, quero dizer, lá naquele lugar e acho que pelo susto, funcionou, fiz xixi para meu alívio e de todos os enfermeiros da UTI. Manhã difícil aquela!

UTI

Depois de toda essa maratona, o silêncio chegou. Meus pensamentos pareciam tsunamis na minha cabeça. Eram tantos que eu nem sentia sono. Tudo se misturava. O passado em Dublin, pensar que dias atrás estava andando na neve, pegando táxi para ir para alguma festa. Bebendo, dançando, me divertindo e o melhor de tudo, tinha voz para conversar e sorriso para transmitir alguma felicidade. Naquele momento eu não tinha nada. Não tinha voz para conversar ou chamar os enfermeiros. Tinha que esperar algum deles olhar para mim, assim levantava a minha mão e eles sabiam que eu precisava de alguma coisa. Também pensava no Pankaj, em como contar para ele tudo isso. Pensava em todos os amigos que eu tinha prometido dar notícias, assim que minhas férias com meus pais acabassem. O que mais doía era lembrar das pessoas que eu tinha deixado em Dublin. Todos achando que eu estava me divertindo e na verdade, estava correndo risco de morte em uma UTI no interior de Santa Catarina. Queria conversar logo com meu irmão e mandar ele correr para internet e avisar todo mundo!
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Não era bem risco de morte, daqueles em que o paciente está em uma situação bem crítica, como depois de algum acidente de carro. Mas me colocaram lá pelo risco de ter parada respiratória, e isso também pode matar. Imagina a cabeça de uma pessoa, se não fica a mil, quando está totalmente consciente, esperando o pior acontecer. Às vezes também pensava no que sentiria se a tal parada respiratória acontecesse. Se ia doer, se ficaria consciente, inconsciente. Se a intubação seria necessária...A gente sempre pensa no pior, por medo...
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E assim passei algumas horas. Pensando, pensando e pensando. O pior era que no meio da UTI tinha um pilar, com a pia e um na parede. Era um martírio ver aquele relógio a cada segundo. Na UTI não tem TV, não tem rádio, só tem gente passando mal e eu lá para assistir. A hora não passava e quando o sono batia eu não conseguia dormir. Quando achava que ia tirar uma sonequinha, mas era tão leve, que quando alguém passava do meu lado, eu já acordava. UTI não é um lugar quieto como eu pensava, tem muito barulho, muita movimentação, especialmente quando há muitos pacientes. Era tentar relaxar, que alguém falava mais alto, era troca de turno, hora de limpar o chão, hora de trocar minha fralda. Pois é, colocaram fralda...Eu deixava lá por segurança, até mesmo quando fui para casa, sei lá, tinha impressão de que alguma coisa ia vazar, mas nunca sujei uma, prefiria usar a comadre.
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No mesmo dia, recebi duas funcionárias do estado, para fazer coleta de uma espécime da membrana da garganta. Como era caso de segurança pública, aquilo foi feito o mais rápido possível para descartar ou tratar aquela hipótese. A coleta também é bem desconfortável. Com uma espécie de cotonete bem comprido, retiraram um pouco da membrana da minha gargante e do meu nariz. Foi rápido, mas a cada visita eu ficava mais nervosa e ansiosa. Eu queria saber logo o que estava acontecendo comigo. Queria um tratamento real!
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Mas a melhor hora do dia tinha chegado, às duas da tarde e a hora da visita. Um de cada vez, minha mãe entrou primeiro. Acho que era meio assustador olhar para mim. Já não estava mais na cama do quarto do hospital, estava na UTI e eu tenho um pouco de idéia de como as pessoas ficam, olhando p cama que estava ao meu lado. Eu agora tinha sonda no nariz, vários eletrodos saindo do meu peito, fios por cima de mim, e um tubo de oxigênio na outra entrada do nariz. Quando minha mãe me deixou, eu não era nem metade disso, só alguém sem forças.
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Tentei falar com minha mãe, na verdade, escutei mais do que falei, pois não conseguia falar de uma forma que as pessoas conseguissem me escutar. Ela falou sobre minha prima Ana, que perguntava de mim. Que estavam conversando para tentar uma transferência para outra cidade, talvez Londrina ou São Paulo, onde eles tinham lugar para ficar. Estavam meio atordoados, mas tentando resolver tudo. Eu sentia vontade de chorar quando via a minha família. Não era legal porque não queria mostrar nenhum tipo de sofrimento, mas ao mesmo tempo estava com medo e não queria estar ali. Quando ela saiu, eu chorei mais, como se eu fosse ver ela pela última vez. Foi tão duro ficar horas longe de pessoas conhecidas e quando finalmente eu poderia ver alguém, era só por alguns minutos.
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Logo depois, antes que pudesse engolir o choro, meu pai entrou. Foi também muito difícil ver ele. Como ninguém estava acostumado ainda com a situação paciente e pais de paciente, uma barreira ainda prevalecia e todo mundo fingia que estava tudo bem. O meu pai é mais curioso, então me fez perguntas sobre a cama, se eu estava confortável, como eu controlava a posição, como estava sendo tratada e também repetiu tudo de bom que minha mãe tinha falado, todo o conforto que eu precisava.
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Eu acho que só uma pessoa poderia entrar para me visitar, mas o meu irmão e minha tia também entraram. Me coração não aguentou mesmo. Eu queria falar, queria reclamar, queria contar o que eu estava sentindo. Além das dores que eu estava começando a sentir, eu não tinha como conversar com alguém, algum enfermeiro, e assim fazer passar o tempo. Depois do meu pai, meu irmão entrou e não conversamos muito. Ele me desejou boa sorte, falou que todos estavam torcendo e que a família da Natália, a namorada dele, também tinham me mandado forças. No fim ele me mostrou o escapulário que ele carregava no pescoço e disse que ia dar para mim, mas como eu não poderia usar no hospital, ele ia entregar para minha mãe, para me proteger. Chorei mais um pouco e assim foi minha última visita.
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Passei a tarde sozinha, entre uma hora e outra, um enfermeiro checava se estava tudo bem e assim as horas foram se passando, muito vagarosamente, mas foram. A noite chegou, novos enfermeiros chegaram para o turno noturno e com o prontuário na mão, passavam em todas as camas, escutando atenciosamente a explicação do turno anterior, sobre tudo o que tinha acontecido naquele dia. Quando chegaram na minha cama, é sempre aquela cara de choque. Todos achavam que era mesmo Guillain-Barré, mas não deixavam de ficar piedosos em ver alguém tão novo internado em uma UTI.
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As luzes se apagaram e chegou a hora de dormir...Ah como eu queria dormir...mas além das dores e do desconforto, o resto do meu rosto paralisou e eu  não piscava mais, muito menos fechava os olhos para tentar dormir...


5 comentários:

  1. nossa Cintia! que barra tudo isso! e que bom que vc tem forcas pra escrever e descrever tudo isso no seu blog!
    Ja coloquei sonda nasal, qdo um comprimido ficou na minha garganta, entao a unica solucao, era tentar empurrar o comprimido pro estomago com a sonda! eles falavam a mesma coisa, engole, engole, engole...dificil ne!

    desejo mais forcas pra vc escrever mais e mais...
    beijos

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  2. Oi Cintia, você é uma vencedora.
    Meu namorado está na uti a 3 meses paralisado, e eles suspeitam da Sindrome também.
    Você ficou quando tempo na UTI? Fez o tratamento com qual medicação?
    Obrigada.
    Agradeço desde já sua atenção.
    Estamos meio desesperados por uma saída.

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  3. Olá, Cintia. A minha avó teve Síndrome de Guillain-Barré. Ela já está há 3 anos sem movimentos. O médico que cuidava do caso dela, disse ter abrido mão. Nós somos de Rondônia e queremos levar ela para outro estado (já que não temos condições de procurar ajuda com médicos particulares) e tentar com outro médico, para que o caso dela possa ser revisto. Será que pode me informar o nome do hospital de Londrina? Desde já, agradeço a sua atenção.

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    1. Oi Maria Luiza. Sinto muito em ler sobre sua avó. Então, eu nao fui tratada em Londrina. Meu tratamento foi feito em Curitiba, no Hospital Angelina Caron.

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    2. Oi Maria Luiza. Sinto muito em ler sobre sua avó. Então, eu nao fui tratada em Londrina. Meu tratamento foi feito em Curitiba, no Hospital Angelina Caron.

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